Artigo da revista abem n 11 setembro de 2004
Beatriz Ilari
Kamile Levek
Angelita Vander Broock
Universidade Federal do Paraná (UFPR)
beatrizilari@ufpr.br
Em nenhuma época houve tanto interesse acerca das relações entre o desenvolvimento cognitivo e a educação infantil. Descobertas recentes nos campos da neurobiologia e psicologia infantil vêm fomentando a elaboração de teorias múltiplas a respeito
da importância dos estímulos e das experiências no desenvolvimento cognitivo humano (Antunes,2003; Gardner, 1983; Herculano-Houzel, 2003).
Tais avanços científicos têm obviamente influenciado a educação musical, e, sobretudo, a educação musical infantil (Ilari, 2003). Como resultado disso, várias
teorias vêm sendo formuladas para explicar os processos e mecanismos envolvidos no desenvolvimento cognitivo-musical (Hargreaves, 1986; Hargreaves;
Zimmerman, 1992; Sinclair, 1989).
Com exceção da Teoria Espiral de Desenvolvimento Musical de Keith
Swanwick (ver Hentschke, 1996; Oliveira, 1996; Sinclair, 1989), ainda há pouca bibliografia sobre o tema disponível em língua portuguesa. Entretanto,
há livros recentes que fazem menções, ainda que de forma indireta, às teorias do desenvolvimento cognitivo-musical. Os três livros aqui resenhados
versam sobre as relações entre o desenvolvimento cognitivo e a educação musical infantil. Por terem implicações diretas e óbvias para a educação musical
infantil, da formação do professor à prática em sala de aula, cada livro foi resenhado em separado, considerando-se três parâmetros básicos:
1) conteúdo e organização do mesmo;
2) contribuições e implicações para a educação musical;
3) relevância para a formação do profissional de educação musical
infantil.
BRÉSCIA, Vera Pessagno. Educação musical: bases psicológicas e ação preventiva. Campinas: Átomo, 2003.
O livro engloba diversos aspectos que instigam a reflexão de educadores musicais. A Primeira Parte aborda temas como a natureza da música e suas origens, as funções da música na sociedade, os efeitos da música no ser humano, questões de interdisciplinaridade (música e psicologia, psicoterapia e saúde) e questões relativas ao ensino e aprendizagem musicais, entre outras. A autora
obviamente revisou uma extensa bibliografia, nacional e estrangeira, para escrever essa parte do livro.
Porém, uma crítica que pode ser feita refere-se ao fato da revisão de literatura ser demasiado pontual e pouco aprofundada. Caso o leitor tenha um interesse
em particular por algum dos temas supracitados, este deverá buscar informações em outras fontes, citadas no texto. Nesse sentido, a revisão de literatura
proposta por Bréscia é apenas introdutória. A partir do item 14, a autora discute a questão da educação musical no Brasil, o que merece bastante atenção
do leitor por sua relevância e importância. Sabe-se hoje que o ensino de música nas escolas brasileiras é bastante desigual, e muitas vezes precário ou inexistente, sendo necessária, portanto, a reflexão e análise das maneiras como a música e as
demais artes estão sendo e deverão ser ensinadas nas escolas brasileiras. A primeira parte do livro traz à tona essa e outras questões que são de interesse
de educadores em geral.
A Segunda Parte apresenta uma pesquisa do tipo survey realizada com crianças e adolescentes participantes do Projeto Guri; projeto social paulista
relacionado ao ensino de música. A autora fundamenta seu trabalho na importância dos projetos sociais, inclusive na função preventiva e no valor da
música no desenvolvimento infantil. A pesquisa aqui descrita foi realizada através da aplicação de questionários aos alunos e professores do projeto, bem
como especialistas de educação musical, externos ao projeto. Os resultados sugeriram respostas bastante positivas com relação aos benefícios que o Projeto Guri traz aos alunos. Nesse ponto, a pesquisa mostrou-se muito interessante. Porém, há algumas
críticas quanto à análise das respostas. Em primeiro lugar, seria pertinente se as respostas de crianças e adolescentes (de 8 a 18 anos de idade)
fossem categorizadas e analisadas em separado (por faixas etárias), já que crianças e jovens são bem diferentes em seu desenvolvimento cognitivo e musical.
Sendo assim, o estabelecimento de faixas etárias resultaria em uma comparação mais sólida das respostas de crianças e adolescentes. Além disso, os
números exatos dos participantes por idade e gênero deveriam ter sido divulgados. Em segundo lugar, é preciso destacar que, de maneira geral, a análise
estatística foi feita de forma bastante descritiva, usando apenas freqüências e porcentagens. Seria interessante que a autora tivesse aplicado alguns testes
estatísticos como chi-quadrado para estabelecer relações mais profundas entre as respostas dos participantes e suas características pessoais.
De maneira geral, o livro apresenta alguns tópicos interessantes que merecem ser lidos e estudados por educadores; não apenas por educadores
musicais, mas por todos aqueles que trabalham com a educação infantil.
PEREIRA, Mary Sue. O descobrimento da criança: introdução à educação infantil. Rio de Janeiro: Wak,2002.
Como o próprio nome diz, o objetivo desse livro é o de fornecer ao leitor uma introdução aos principais temas da educação infantil. Embora o tema
central do livro não seja o desenvolvimento cognitivomusical, o tema é abordado em um dos capítulos, como será visto mais adiante. Dividido em sete capítulos,
Pereira traz uma revisão boa, porém sucinta e, em alguns momentos, pouco aprofundada da história e do desenvolvimento da educação infantil. No primeiro capítulo, a autora apresenta os objetivos do livro, faz um breve histórico da educação infantil –
dos povos primitivos aos tempos atuais – e faz menção aos precursores (Rousseau, Pestallozzi, Froebel, Montessori, Dewey, Claparéde, Piaget, Ferreiro e
Vygotsky). Há uma pequena falha nesse capítulo quando a autora faz referência aos estágios piagetianos. Por alguma razão desconhecida, a autora fala em três e não quatro estágios de desenvolvimento, e não cita o primeiro deles, isto é, o estágio
sensório-motor. Contudo, já no próximo capítulo ela retoma o assunto, dessa vez falando em quatro estágios piagetianos. Essa falha é perigosa porque pode
gerar uma certa confusão no leitor que se ativer ao primeiro capítulo (como ocorre freqüentemente no ensino superior, onde os docentes escolhem capítulos
ou partes de livros para comporem o material usado em cursos). No segundo capítulo a autora discorre sobre a descoberta da criança, falando inicialmente
da história e evolução da instituição família, incluindo questões de gênero e escolarização. Em seguida, são apresentadas algumas noções pontuais
do desenvolvimento infantil nos campos afetivo, cognitivo, motor e social. Embora as noções apresentadas acerca do desenvolvimento infantil sejam pertinentes, a autora não é consistente na categorização dos itens por idades, e não cita as
fontes consultadas. O próximo capítulo, isto é, o número três, versa sobre música, ritmo e movimento.
Com base na noção contemporânea do mundo como um grande objeto sonoro, a autora fala na importância do som e da música, aqui usados como sinônimos, e do corpo como uma importante fonte sonora. É nesse momento que são pontuados certos aspectos do desenvolvimento cognitivo-musical, alguns apresentando um pequeno equívoco, como,
por exemplo:
A primeira e mais elementar resposta da criança a um estímulo é o de bater palmas. Quando, no primeiro ano de vida, a criança está brincando com sua mãe,
devemos observar se o movimento de bater palmas está acontecendo de maneira correta.(p. 75).
O problema da afirmativa acima é conceitual. As pesquisas da educação musical infantil e da psicologia cognitiva da música já demonstraram que as
primeiras respostas de uma criança a um estímulo referem-se à busca do objeto sonoro, através de olhares ou viradas de cabeça, e ao movimento corporal
não coordenado. A criança pode balançar o corpo, mexer as pernas, e até bater palmas, mas isso dificilmente ocorrerá de forma sincronizada ao pulso ou,
o que a autora designa, de maneira “correta” (ver MacDonald; Simons, 1989). Porém, há várias afirmativas pertinentes nesse capítulo, como a importância
do professor conhecer a tessitura vocal das crianças ou a apreciação musical através da expressão corporal. A autora ainda fala na importância da bandinha musical, atividade educacional que esteve muito em voga no passado, mas que vem sendo
paulatinamente substituída por outras atividades na musicalização infantil moderna. O capítulo seguinte,de número quatro, também é bastante pertinente à educação musical porque parte da discussão sobre o valor do jogo e do brinquedo para introduzir a questão do currículo. Do ponto de vista da formação
prática do professor, talvez este seja o melhor capítulo de todos no livro de Pereira. É aqui que são tratadas as questões referentes ao currículo e à escolha
de atividades, que a autora categoriza como criativas, de discriminação, de organização e operatórias.
Em seguida, no Capítulo 5, são abordadas as questões referentes às artes visuais na educação infantil. Assim como foi feito no Capítulo 3 com o desenvolvimento cognitivo-musical, as etapas do grafismo infantil são abordadas aqui de forma bastante pontual, porém, novamente, sem fazer referências às fontes consultadas. É interessante notar que a autora faz grande uso do termo criatividade quando
fala das artes visuais, embora não apresente uma definição do mesmo para o leitor. No capítulo seguinte, a autora descreve alguns projetos em educação infantil e parte destes para discutir a questão da qualidade do ensino. É ainda nesse capítulo que as
contribuições da antropologia e da psicologia da educação infantil são apresentadas, e autora retoma algumas tendências e métodos de ensino baseados em Montessori, Dewey, Piaget e Freinet. Ao final do capítulo há uma retomada da questão dos projetos
de trabalho, com a apresentação de uma tabela bastante confusa acerca das diferenças entre as maneiras de organizar o conhecimento escolar, e da proposta de ensino temático. O último capítulo, que é bastante sucinto, versa sobre a avaliação e apresenta algumas propostas práticas para o professor. De uma forma geral, o livro de Pereira faz jus ao título, já que é bastante panorâmico e pouco aprofundado.
Como ficou dito, os Capítulos 1 e 4 são, em nossa opinião, os melhores de todo o livro; o primeiro por apresentar uma introdução leve à história e ao desenvolvimento
da educação infantil, e o quarto por apresentar excelentes dicas práticas e de organização ao professor iniciante. Porém, os capítulos sobre o ensino das artes deixam a desejar na medida em que tendem a tratar o ensino da música e das
artes visuais como um meio e não um fim. Uma questão interessante que emerge com relação ao ensino das artes refere-se ao uso do termo “criatividade”;
termo que, no contexto do livro, aparece apenas no capítulo sobre as artes visuais. Sabe-se hoje que a criatividade é fator preponderante na educação infantil
como um todo, e que emerge já na infância nas mais diversas áreas de conhecimento, inclusive no ensino e aprendizagem musicais (ver Gardner, 1983; Hargreaves, 1986; Hargreaves; Zimmerman, 1992).
Levando em consideração o fato desse livro objetivar uma introdução ao desenvolvimento infantil e não ao desenvolvimento musical propriamente dito, é possível que a questão da criatividade em música tenha sido deixada de lado propositalmente. O professor de música pode aproveitar muitas idéias oferecidas
por Pereira, mas deve ter em mente que está diante de um livro que não se esgota em si, mas que, como o próprio nome diz, é uma introdução que sugere a
busca de outros.
SUZIGAN, Geraldo de Oliveira; SUZIGAN, Maria Lucia Cruz. Educação musical: um fator preponderante na construção do ser. São Paulo: G4 Editora, 2003.
O livro escrito pelos professores do Centro Livre de Aprendizagem Musical (CLAM), publicado inicialmente em 1996 pela CLR Balieiro, chega agora à sua quarta edição, pela Editora G4. Embora não seja um lançamento, entendemos ser este um livro bastante
importante, em língua portuguesa, para os educadores interessados no desenvolvimento cognitivomusical infantil. Daí a importância de resenharmos o mesmo. O livro é dividido em 11 capítulos que versam sobre a educação musical e a proposta curricular
para a educação infantil; princípios metodológicos, avaliação e observação; a identidade de professor de música; bases psicológicas; os benefícios
extramusicais do aprendizado musical; a nova escola; a educação musical dos 3 meses aos 12 anos de idade, entre outros. Além disso, os autores apresentam
mapas instrucionais com sugestões de atividades de ensino desenvolvidas pelo CLAM, bem como alguns exemplos de músicas do folclore brasileiro re-harmonizadas para uso em sala de aula. De maneira geral, o livro é muito bem redigido e organizado.
Entretanto, há alguns comentários que não podemos deixar de fazer. No Capítulo 7, por exemplo, os autores discutem a educação musical dos 3 meses aos 4 anos de idade, ignorando os dados recentes das pesquisas em psicologia da música, que sugerem que a educação musical do ser humano no tem início ainda no útero materno. Não há menções
ao ensino de música de recém-nascidos ou menores de 3 meses, área bastante explorada hoje pelos grandes centros mundiais de educação musical infantil. Um segundo comentário refere-se à discussão proposta no Capítulo 5, a respeito da educação
musical como elemento facilitador da alfabetização e do raciocínio lógico-matemático. Apesar da discussão ser pertinente e relevante, é preciso salientar
que em nenhum momento os autores dizem que ainda não há, por exemplo, relações causais definitivas entre o aprendizado musical e o raciocínio
lógico-matemático. Embora nos pareça bastante razoável que o ensino de música produza benefícios extramusicais que podem ser transferidos para
outras áreas de conhecimento, este é um assunto polêmico que vem gerando uma quantidade enorme de generalizações incorretas ao redor do mundo (ver Ilari, 2003). Sobretudo, gostaríamos de salientar que a educação musical infantil tem importância em si; é um fim e não um meio. Entretanto, o livro de Suzigan e Suzigan é bastante rico de idéias e altamente recomendável.
Referências:
ANTUNES, Celso. As inteligências múltiplas e seus estímulos. Campinas: Papirus, 2003.
GARDNER, Howard. Frames of mind: the theory of multiple intelligences. NewYork: Basic Books, 1983.
HARGREAVES, David J. The developmental psychology of music. Cambridge: Cambridge University Press, 1986.
HARGREAVES, David J.; ZIMMERMAN, Marilyn P. Developmental theories of music learning. In: HANDBOOK of Research on Music
Teaching and Learning. New York: Schirmer Books, 1992. p. 377-389.
HENTSCHKE, Liane. Um estudo longitudinal aplicando a teoria espiral de desenvolvimento de Swanwick com crianças brasileiras da
faixa etária de 6 a 10 anos de idade: pólo Porto Alegre. In: MÚSICA: pesquisa e conhecimento. Porto Alegre: UFRGS, 1994. v. 2, p.
9-34.
HERCULANO-HOUZEL, Suzana. Sexo, drogas, rock ‘n’ rol e chocolate: o cérebro e os prazeres da vida cotidiana. Rio de Janeiro:
Vieira e Lent, 2003.
ILARI, Beatriz. Research on music, the brain and cognitive development: Addressing some common questions of music educators.
Music Education International, Nedlands, v. 2, p. 49-54, 2003.
MCDONALD, Dorothy; SIMONS, Gene. Musical growth and development: birth through six. New York: Schirmer, 1989.
OLIVEIRA, Alda. Um estudo longitudinal aplicando a teoria espiral de desenvolvimento de Swanwick com crianças brasileiras da
faixa etária de 6 a 10 anos de idade: pólo Salvador. In: MÚSICA: pesquisa e conhecimento. Porto Alegre: UFRGS, 1994. v. 2, p. 35-
67.
SINCLAIR, Hermine. A produção de notações na criança: linguagem, número, ritmos e melodias. São Paulo: Cortez, 1990.
Recebido em 14/06/2004
Aprovado em 19/07/2004
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