(do modelo dominador para o modelo de parceria)
José Antônio Leite Teixeira

Resumo

O presente artigo aborda a importância da inclusão da educação musical na necessária re-elaboração dos currículos escolares brasileiros, buscando uma mudança de paradigmas (do modelo dominador para o modelo de parceria). A música precisa ser vista como forma de conhecimento com suas especificidades, ou seja, uma disciplina autônoma com conteúdos capazes de fazer a integração entre as diversas matérias escolares. Os Parâmetros Curriculares Nacionais, através dos Temas Transversais, podem servir como indicadores para estas discussões setoriais e gerais, com vistas a uma integração cada vez mais significativa dos conteúdos escolares. Referenciais teórico-metodológicos aplicados à música podem lançar luzes nesta nova procura por práticas pedagógicas não discriminatórias, em busca da melhoria da qualidade da educação na escola, num ensino conectado e holístico.

Palavras-chave: Educação musical, Modelo de parceria, Curriculo escolar

Introdução

As crianças do amanhã ouvem, cantam e tocam canções celebrando a vida e a natureza, nunca entoando hinos de guerra como as de hoje. Durante as aulas com o professor Fialho, a certeza de estar no caminho certo: toda mudança passa pela educação. Precisa-se buscar a reconstrução do modelo educacional baseado na parceria, onde o sentimento fundador é a emoção; o amor. Igualdade de gênero, empatia, entendimento, curiosidade, inteligências múltiplas, ensino conectado, holístico... tudo isso depende, segundo Riane Ficher (no livro Tomorrow´s Children), de uma mudança de três marcos: o processo (como ensina-se), o conteúdo (o que ensinamos) e a estrutura ( como reparte-se poder e tarefas). A música pode ter papel fundamental nesta mudança de paradigma, atuando nestes três marcos.
É sabido que a educação acontece na escola, através do ambiente familiar, da religião e dos meios de comunicação de massa. Mas é na escola que centraremos o foco deste trabalho. Já tendo feito parte do Quadrívio (junto com a Astronomia, Aritmética e a Geometria - enquanto o Trivio era composto pela Retórica, Gramática e Dialética), a Música foi relegada quase ao esquecimento após a Revolução Industrial, pelo menos enquanto importante ferramenta educacional. Principalmente nos últimos anos, aqui no Brasil. Para entendermos um pouco mais a este respeito, um rápido resumo do papel da música nas escolas brasileiras no último século.

Desenvolvimento

1. Breve histórico

O movimento do Canto Orfeônico, idealizado e desenvolvido por Villa-Lobos a partir da década de 30, pretendia unificar a educação musical no sistema educacional brasileiro. Enfatizou uma prática centrada nas idéias de coletividade e civismo, condizentes com o Estado Novo. Na década de 60, a Lei de Diretrizes e Bases (LDB 4024/61) substitui o Canto Orfeônico pela Educação Musical, baseada no modelo de ensino adotado em conservatórios de músicas, apresentando uma oposição ao ensino da teoria musical mais abrangente e à ênfase nos aspectos matemáticos e notacionais da música. Entretanto, ficou restrita a pontos isolados do território nacional.
Nos anos 70, a LDB 5692/71, que instituiu a Educação Artística como prática polivalente, trouxe sérias implicações para a prática pedagógica. É inconcebível que um indivíduo detenha os conhecimentos específicos de cada linguagem artística em apenas dois anos (no caso da licenciatura curta) e ainda esteja preparado pedagogicamente para ser professor nas áreas de artes plásticas, teatro, música e dança. Sem contar o reduzido espaço no currículo escolar para que o aluno possa aprender as diferentes linguagens. A prática demonstrou a inconsistência desta preposição. Quem ousaria incluir no currículo uma disciplina chamada Línguas, para a qual um mesmo professor devesse dar conta de Português, Inglês, Espanhol e quiçá Francês numa mesma aula de dois ou três créditos por semana?
Com a recente LDB (9394/96) e os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), o termo Educação Artística foi substituído pelo Ensino de Artes, e pela ausência do termo polivalência. Porém só a troca de termos não promoveu mudanças. Apesar de já ser praticada como disciplina isolada em uma dúzia de escolas da Prefeitura de Florianópolis, por exemplo, a música ainda está distante de ser considerada uma disciplina com vida própria no currículo escolar brasileiro. Aqui mesmo em Santa Catarina, onde a Universidade Estadual (Udesc) oferece cursos superiores para formação de professores de música, artes plásticas e teatro (ainda não existe nesta instutuição a faculdade de dança), o governo acaba de lançar um concurso para professores de artes, não garantindo a autonomia de cada uma das áreas. O paradoxo continua Brasil afora, não se respeitando as especificidades de cada linguagem.
Ainda é preciso romper com muitas barreiras relacionadas à arte e seu ensino, tanto na comunidade em geral, como nos sistemas educacionais. Nunca se produziu tanto material bibliográfico nas diversas áreas artísticas como nos dias atuais, Tal bibliografia, infelizmente ainda inacessível para a grande parte da população escolar, demonstra a importância da abordagem das diversas áreas artísticas como formas autônomas de conhecimento. As particularidades de cada linguagem podem e devem ser sistematicamente desenvolvidas no âmbito escolar, a fim de reorganizar as propostas e redimensionar o papel das artes no currículo e na vida educacional dos indivíduos.
É por aqui que passa a intersecção possível das mudanças de paradigmas de uma educação baseada num modelo dominante, para uma educação baseada no modelo de parceria. A música pode ser uma forma de atrair crianças para aprender a modificar esta sociedade dominadora, uma ferramenta de inspiração para criar um mundo mais justo e menos violento. Afinal, a aprendizagem ocorre através do desenvolvimento cognitivo (intelecto), afetivo (emoções), conativo (vontade) e do psicomotor (‘soma’; corpo).
No quinto capítulo do livro Tomorrow’s Childrens, Riane Ficher fala da arte em geral, como uma importante forma de expressão humana. Ensinada desta forma desde as séries iniciais, a arte ajuda as crianças a expressar a criatividade e familiarizá-las com outras tecnologias criativas. A autora vai mais além e afirma que a arte pode ser ensinada em todos os níveis escolares e integrar todas as disciplinas, já que as representações artísticas retratam a realidade de diferentes épocas.

2. Vivenciando experiências não verbais

Por mais que a atividade musical esteja diretamente relacionada ao entretenimento, a música na escola precisa assumir um papel relevante enquanto forma de conhecimento e isto só será possível a partir da inclusão da disciplina e da sua continuidade no ensino. É preciso que se aprimorem as organizações curriculares e que cada linguagem artística tenha presença garantida de forma digna e real. Não basta o discurso da mudança de paradigma se ainda os professores das diferentes linguagens artísticas estão à margem do processo escolar, com número de aulas insuficientes, espaços inadequados, desprestígio enquanto mediadores de processos educacionais relevantes.
Nesta busca de re-elaboração dos currículos é preciso estar garantida a presença e continuidade da educação musical, isto é uma questão de tolerância política básica. Afinal, música é uma forma de conhecimento e deve ser respeitada como tal. Em educação musical, deve-se possibilitar a liberdade de trabalho de profissionais com linhas diversificadas de formações musicais, configurando abordagens multiculturais. Desta forma pretende-se tratar com o devido respeito diferentes pontos de vista no desenvolvimento de conteúdos específicos.
Diferentemente de outras áreas já estabelecidas no currículo escolar, a educação musical, que esteve ausente durante tanto tempo, estará se deparando com questões presentes na cultura escolar, onde ensinar música está diretamente vinculado a ensinar um instrumento musical, ou ainda, que só pode aprender música quem tem talento. Estes aspectos do senso comum, infelizmente, também pertencem ao universo de professores de música que, aberta ou veladamente, estabelecem, através de suas metodologias, práticas discriminatórias. O empenho de profissionais da educação terá que ser muito grande, e a argumentação a respeito dos diversos posicionamentos teórico-metodológicos deverá ser clara e firme no sentido de diferenciar práticas pedagógicas diversas, garantidas pela tolerância política, daquelas práticas pedagógicas discriminatórias que não deveriam conviver nesta proposta curricular.
3. Linhas metodológicas

Referenciais teórico-metodológicos estão disponibilizados na literatura através de publicação de autores consagrados internacionalmente, assim como através da produção de autores brasileiros. Dalcroze, Willems, Orff, Kodály, Villa-Lobos, Suzuki, Schafer, para citar os mais conhecidos e aplicados, apresentaram questões significativas para educação musical e podem conviver na prática escolar. Também já estão sendo aplicadas novidades como a teoria espiral do desenvolvimento musical de Swanwick, e a abordagem da musica como cognição de Serafine. Para este autor, a música é uma modalidade de conhecimento distinta e ele procura identificar os processos cognitivos relacionados ao pensamento musical. Também no campo da cognição, são importantes os trabalhos de Gardner relacionados às inteligências múltiplas, onde se inclui uma inteligência musical autônoma.
Ainda na busca de referenciais teórico-metodológicos é de fundamental importância a contribuição da psicologia da música para a educação musical, como os trabalhos de Aiello, Deutsche, Hargreaves, Oliveira, Sloboda, entre tantos outros. A sociologia da música também é uma área recente que muito tem contribuído para a reflexão e compreensão de conceitos de educação musical. Pesquisadores brasileiros, como Arroyo, Souza e Tourinho, têm produzido material importante para os educadores musicais e a prática da música na escola, enfatizando questões conceituais.
Mas a simples utilização dos livros de um autor, ou a tradução do texto de uma canção, ou a adoção de comportamentos próprios de uma cultura distante, não garantem uma educação musical de qualidade, mesmo quando bem intencionada. É extremamente relevante o contexto escolar na sua mais ampla abrangência para o estabelecimento de metodologias adequadas. Aqui também devem estar incluídas reflexões sobre os pressupostos filosóficos e psicológicos de cada método, além de cuidadosa avaliação do contexto onde se pretende desenvolver tais práticas.
Aspecto que merece extremo cuidado é o talento, com seus conceitos e discriminações na área do ensino musical. A literatura de educação musical também dispõe de um grande número de estudos e teses relacionado à mediação de habilidades musicais, e muitas críticas acompanham tal literatura. Não é possível determinar com precisão qual é o grau de musicalidade de um indivíduo. O que se pode identificar são certas facilidades ou aptidões de certos indivíduos, o que não exclui a possibilidade de outros indivíduos “menos aptos” desenvolverem habilidades musicais. Considerar o talento como ponto de partida ou como condição essencial para a aprendizagem musical é fomentar uma educação pela exclusão, é pretender sedimentar a educação musical num plano intangível. É reforçar o modelo dominador.






4. A democratização do acesso e da gestão

Parte-se do princípio de que existe a possibilidade de uma educação musical para todos os indivíduos que freqüentam a escola, assim como se oferece uma educação matemática para todos os indivíduos que participam de um processo escolar.
A escola deve propiciar uma formação mais plena para todos os indivíduos. As mudanças de paradigmas deverão sair do papel para a prática efetivamente. Muito se fala da escola formadora do cidadão mais consciente de si e do mundo, mas ainda se reforça a racionalidade na escola, ignorando que a formação plena do indivíduo também passa pelo desenvolvimento dos aspectos emocionais e sensíveis. A música é uma forma de conhecimento que possibilita modos de percepção e expressão únicos e não pode ser substituída por outras formas do conhecimento.
A democratização do acesso também passa pela música como pertencente ao patrimônio cultural da humanidade e, portanto, pertencente a todos os indivíduos, sem distinção. Nesta linha de pensamento também a educação musical deve se conscientizar de seu papel na cultura escolar, contribuindo para a ampliação do universo sonoro do estudante, incorporando músicas de diferentes épocas e propostas. As questões referentes à música popular, erudita ou folclórica; nacional ou internacional; atual ou antiga; devem compor elementos fundamentais para uma efetiva democratização da música no contexto escolar.
Devemos considerar, ainda, como um aspecto importante para a democratização do acesso aos bens culturais, a manutenção da disciplina de música com carga horária compatível para uma aplicação consciente e significativa da escola, “de forma a promover o desenvolvimento cultural dos alunos” (LDB, Art. 26, § 3°, apud Saviani, 1997, p.171).


Considerações finais

O conceito de escola está constantemente mudando - seja pelas inovações tecnológicas, pelos meios de comunicação de massa, pela informática - e a comunidade escolar deve reivindicar o direito ao conhecimento. Em música não é possível conceber que o conhecimento pode se dar a partir de descrições de termos vagos de significado, ou de teorizações descontextualizadas, ou ainda através de fatos históricos ou anedóticos acerca de música ou músicos. É preciso e é possível incluir música na educação básica. A qualidade e consistência desta atividade só serão possíveis a partir da reorganização da didática da educação musical desde a pré-escola até o ensino médio.
A riqueza musical brasileira não pode ser ignorada na organização do trabalho didático na escola. Mas também a produção musical do mundo pode e deve estar presente na educação musical. É preciso aparar muitos preconceitos e vencer muitas resistências para que se possa construir de fato algo condizente com aquilo que se pode chamar de educação para o terceiro milênio. E a música precisa estar incluída nesta discussão.
Especialistas devem trabalhar conjuntamente, rediscutindo limites e vantagens de suas práticas isoladas, apresentando soluções pedagógicas para tantos desafios decorrentes de uma educação fragmentada que temos vivenciado. Os Parâmetros Curriculares Nacionais, através dos Temas Transversais, podem servir como indicadores para estas discussões setoriais e gerais, com vistas a uma integração cada vez mais significativa dos conteúdos escolares. A integração horizontal e vertical dos conteúdos se faz absolutamente necessárias nesta proposta de re-elaboração de currículos.
A educação musical pode estar perfeitamente incorporada às atividades educacionais, conservando suas características peculiares. Inserir música às atividades educacionais não quer dizer cantar para decorar fórmulas matemáticas ou datas cívicas, ou ainda cantar para aprender elementos gramaticais de idiomas estrangeiros, como é feito hoje em dia. Mas sim, incorporar efetivamente música como experiência educacional que permita aos indivíduos se relacionarem com esta forma de expressão humana.
Para isto é preciso conhecer mais detalhadamente a realidade escolar, as características das diversas faixas etárias, as perspectivas culturais e educacionais associadas aos conteúdos de cada modalidade do conhecimento presente no currículo escolar. E a música faz parte da cultura, e não pode estar ausente nesta busca pela melhoria da qualidade da educação na escola.


Bibliografia

BRASIL. (1988). Parâmetros Curriculares nacionais (1ª a 4ª séries). Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MAC/SEF.
BRASIL. (1988). Parâmetros Curriculares nacionais: Arte (5ª a 8ª séries). Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MAC/SEF.
FICHER, Riane (199 ). Tomorrow’s Childrens.
Martins, R. (1985). Educação Musical: Conceitos e Preceitos. Rio de Janeiro: FUNARTE.
NOGUEIRA, A. (1997). O modelo da educação musical no Brasil: Um drama em três atos incongruentes. Revista da ABEM, 4, Associação Brasileira de Educação Musical.
OLIVEIRA, A. (1993). Fundamentos da Educação Musical, 1, Associação Brasileira de Educação Musical.
PENNA, M. (1990). Reavaliações e Buscas em Musicalização. São Paulo: Loyola.
SAVIANI, D. (1997). A nova lei da educação: Trajetória, limites e perspedtivas (3 ed.). São Paulo: Autores Associados.
VILLA-LOBOS, H. (1976). Canto Orfeônico. São Paulo: Vitale.


|

0 comentários: