Ambiente Medieval p.II

Continuação

Canções para o Povo

A forma musical do século XIII foi o motete (do francês mot, que significava palavra), cuja essência consistia na introdução de textos profanos em vernáculo. Na França, Espanha e Inglaterra encontramos hinos na língua nacional, não em Latim, e música profana escrita e composta com verdadeira sofisticação.Que a música popular era sofisticada, já se sabe através de Gerald Cambrensis, escritor galês de 1175 que observa que numa reunião de compatriotas seus eram ouvidas tantas composições vocais quantos os cantores presentes. Pode-se ter certeza de que alguns deles acompanhavam seu vizinho, tal como se faz hoje, e que harmonizavam em terças e sextas - esses intervalos melífluos (que flui como mel; suave, brando; doce) que a Igreja desprezava mas que, mais tarde, compositores ingleses espalharam pela Europa. Imitavam também a melodia do cantor que estava a seu lado, criando depois um cânone, como em Sumer is icumen in, e posteriormente Three blind mice e London's burning ? . O conceito de cânone é, ao mesmo tempo, intelectual e ingênuo. A criança fica encantada e fascinada ao descobrir que resulta harmonia quando alguém segue a melodia começada pelo companheiro; o compositor erudito deleita-se com a criação de tais complicações, levando-as assim ainda mais longe.
Música Vocal - Introdução

Durante o século XV, consolidaram-se as formas musicais religiosas que, além do gregoriano, continuariam existindo até os nossos dias: a missa e o motete, estabelecendo-se o caráter unitário da "missa". Ao longo dos séculos XV e XVI foram oferecidas várias soluções para o problema da unificação das suas diferentes partes, segmentando-se em quatro tipo: Cantos firmus ou missa tenore, baseada numa melodia já existente, em que aparece uma voz contínua (normalmente de tenor) nas diferentes partes da obra. O Cantus firmus original pode ser religioso ou profano. Entre esses últimos, o mais conhecido e utilizado foi a canção L'homme armé, base para inúmeras missas. Missa paráfrase: parte também de uma melodia monódica anterior, utilizada como base na construção da missa polifônica. As difentes partes da melodia original aparecem nas diferentes vozes da missa, imitando-se umas às outras. Missa paródia nesse caso, utiliza-se uma obra anterior polifônica, normalmente um motete. Ao escrever a missa, o autor não só modifica o texto, como acrescenta, suprime e intercambia as linhas melódicas ou, inclusive, as modifica, mas ainda imitando-as. Missas originais ou sine nomine: o compositor utiliza a sua técnica e o seu talento para preparar um material completamente novo. São identificadas pelo modo como estão compostas ou, também, por algum engenho técnico em que se baseiam. As missas correspondentes a esses grupos são conhecidas pelos nomes das obras que lhes serviram de ponto de partida (Missa L'Homme armé, Missa Pange Lingua). Nelas, o compositor quase sempre apoia-se numa tradição anterior, do mesmo modo o homem medieval e o renascentista usavam o pensamento clássico, a Bíblia e autores escolásticos como fontes de conhecimento, tão válidas quanto o racionalismo científico. As missas que contêm as cinco partes do ordinário são conhecidas como Missa de Glória. Há, ainda, as missas fúnebres, chamadas Réquiem ou Pro defunctis, com parte do ordinário, partes próprias da liturgia mortuária (como irae ou Lux aeterna) e algumas partes do ofício, mas nunca o glória. É grande sua variedade e seus recursos técnicos e estéticos. A recriação de melodias gregorianas é frequente no ofício fúnebre, utilizando o cantus firmus e, também, sons mais graves, que representem a morte ou o inferno. Ao longo do século XV, o motete perdeu o seu caráter profano, convertendo-se em protótipo religioso, que adotou o Latim como língua e reduzindo a quantidade de textos. Também permitem uma grande liberdade textual, passando a ser utilizados tanto nas cerimônias litúrgicas, como em outras funções religiosas (procissões) e nas devoções domésticas. Pode-se defini-lo como um texto dividido em pequenas seções, com um certo sentido lógico, às quais correspondem episódios musicais. O contraste entre as seções pode ser: temático, técnico ou baseado no colorido e tessitura das vozes. A economia das cadências presente no motete, bem como a concatenação dos seus episódios conservam o seu caráter unitário.
Mestres Inglêses e Franco-Flamengos do Século XV


Terminada a guerra dos Cem Anos, a Inglaterra e o ducado de Borgonha converteram-se nos centros da cultura musical do século XV. Os compositores ingleses viajaram ao continente europeu na primeira metade daquele século. Alguns estabeleceram-se onde hoje é a França, na época território inglês. O mais importante foi John Dunstable (1385-1453), autor de motetes, hinos e antífonas, além de outras obras de caráter profano. No seu trabalho, o texto é o que define a forma musical, o anúncio do que seria uma das características do renascimento. No entanto, a grande contribuição da música inglesa está na busca de sonoridades completas (acordes com terceiras e quintas, ou sextas). O ducado de Borgonha comandou a evolução musical da época. Sua pacífica situação política, em relação ao resto da França, favoreceu o desenvolvimento de uma corte refinada, com um complexo cerimonial e gostos artísticos elegantes. A burguesia contribuiu igualmente para o desenvolvimento artístico, cujos resultados manifestaram-se, sobretudo, na música e na pintura. O auge burguês e a transferência do ducado ao imperador Maximiliano I, em 1477, trasladou o centro cultural para os Países Baixos. Esta escola, ao longo de quase 200 anos espalhou sua influência por grande parte da Europa. A presença de cantores germânicos, a sedução das obras inglesas e os intercâmbios com Itália, contribuíram para a criação de uma linguagem internacional comum.

GUILLAUME DUFAY (1400-1474) O mais representativo dos compositores flamengos da primeira geração. Nascido na fronteira franco-belga, passou parte de sua vida na Itália, ao serviço de instituições eclesiásticas e de nobres, como a corte de Sabóia ou os Malatesta, e morreu como cônego de catedral de Cambrai. Escreveu um moteto para a consagração da catedral de Florença, em 1436, sendo que seu legado mais transcendente é um conjunto de missas, oito das quais, sem nenhuma dúvida, são de sua autoria. São missas cantus firmus para tenores religiosos, a quatro vozes, sendo que, em determinadas passagens, o número de vozes é reduzido e o cantus firmus eliminado. A alternância entre passagens a quatro e a duas vozes, ou mesmo a três, aparece ao longo da polifonia de Dufay. Esta seria uma das características da música seguinte. Dufay também foi o autor da primeira missa de Réquiem que se conhece, apesar de não conservada.

JOHANNES OCKEGHEM (1420-1495) É a figura indiscutível da polifonia religiosa de meados do século XV. Nunca viajou à Itália e sua vida esteve sempre ligada à França e à sua corte. Foi um compositor pesquisador, o que não significa que não tivesse talento. Algumas de suas obras contêm uma técnica de contraponto bastante complexa, além de um refinamento intelectual fora do comum. A produção mais importante de Ockeghem foram as suas missas, também compondo belos motetes marianos e um Réquiem polifônico, que é o mais antigo que se tem notícia. Utiliza a técnica do cantus firmus nas treze missas que compôs, além de rebuscados efeitos, como na Missa Prolationum, onde cada voz segue um compasso diferente, originando contínuos cânones (cada voz repete ou imita o anterior). Quase todas foram escritas para quatro vozes, com tessituras clássicas (superius, altus, tenor e bassus), utilizando registros graves e evitando o cruzamento entre elas.

JOSQUIN DES PRÈS (1445-1521) Uma das mudanças mais importantes deste período foi a definição da figura do compositor como indivíduo, já que, durante os primeiros séculos, as obras anônimas, os manuscritos e suas variantes, ou improvisações dos cantores, foram os que formaram os livros litúrgicos do coro. A partir do século XV, destacaram-se os caracteres individuais. Deste modo, podemos falar de várias gerações de músicos franco-flamengos, a terceira das quais, entre o final século XV e começo do século XVI é representada pelo francês Josquin des Près. É provável que tenha começado, menino, no coro da igreja de Saint Quentin. Depois, passou vários anos na Itália, mais precisamente em Milão, Roma e Ferrara. Foi cantor da capela papal e da catedral de Milão, e também serviu a nobres como os duques Galazzo Maria Sforza e Ercole I del Este. Trabalhou para a corte francesa, passou seus últimos anos como cônego de Santa Gúdula, Bruxelas, e foi prebendado (cargo eclesiástico) na corporação dos cônegos de Condé-sur-l'Escaut, onde morreu. Sua vida errante demonstra o interesse que havia na contratação de seus serviços. Des près também foi um dos primeiros autores cuja obra difundiu-se graças à imprensa. Em 1501, apareceria a primeira antologia de música polifônica impressa. Sobre des Près, Lutero comentou: "o amo das notas, elas devem fazem o que ele queria, enquanto que os outros devem fazer o que queriam as notas". Foi comparado com Miguel Ângelo pelo humanista florentino Cosimo Bartoli. Se havia algo em que os reformadores religiosos e os humanistas coincidiam, quanto à opinião musical, era em priorizar mais a palavra do que a música. Este foi o princípio adotado por Des Près: o texto determinava o desenvolvimento da linha melódica, tanto na sua forma como no seu significado. Buscando textos mais claros, eliminou as complexidades melódicas e de contra-ponto de compositores como Ockeghem e respeitou a acentuação das palavras e a pontuação das frases. A importância da letra e a maior variedade dos textos consolidam o motete, que passou a ter preferência em relação à missa por ser uma forma mais refinada. Des Près compôs, além de obras profanas em francês ou italiano, umas vinte missas e quase uma centena de motetes. As missas representam o lado mais conservador de sua música, já que utilizou os recursos convencionais. Na Missa Pange Lingua aplicou a técnica de paráfrase: o início e outros fragmentos desse hino gregoriano aparecem em diferenciadas vozes, imitando-se umas às outras. Uma maior variedade e qualidade podem ser apreciados nos seus motetes, onde a técnica de imitação, com sucessivas entradas das vozes, substituiu à técnica do cantus firmus, variando o colorido da obra de acordo com a altura das melodias e com a disposição das partes polifônicas. Em algumas das suas obras, talvez da última etapa, Des Près, tentou expressar, com o movimento da música, o significado das palavras, como fariam depois os madrigalistas e os adeptos da música reservata . Em muitos casos, Des Près musicou motetes, com textos bíblicos (principalmente Salmos) e litúrgicos (sequências). Entre os muitos notáveis compositores franco-flamengos contemporâneos de Des Près, que trabalharam o gênero religioso com grande perícia, Jacob Obrecht (1450-1505), autor de várias missas cantus firmus, e Heinrich Isaac (1450-1517), que compôs mais de trezentas obras para o próprio das missas dominicais e dias santos, reunidas no Choralis Constantinus . Na Alemanha, a música polifônica litúrgica conservou muitas características medievais até o século XVI, demonstrando pouca originalidade ao utilizar como modelo as composições franco-flamengas. A monodia religiosa ocupava um lugar de destaque, com obras litúrgicas em latim, na linha do posterior cantochão; em alemão, com caráter devoto; e sobre textos bíblicos, interpretados pelos meistersingers, herdeiros da tradição das cortes medievais, influenciados pelo cantochão e pela canção popular. A Inglaterra ocupava um lugar periférico e conservador desde meados do século XV, depois de Dunstable e do isolamento político desencadeado pela Guerra das Duas Rosas. Os músicos ingleses quase não mantiveram relação com o continente europeu até a segunda década do século XVI. Por esse motivo seu estilo praticamente não utilizou as técnicas do contra-ponto imitativo dos franco-flamengos; ao contrário, deram preferência a uma sonoridade com acordes cheios para quatro, cinco e seis vozes, dentro de um estilo bastante simples e com passagens melódicas enfeitadas em algumas sílabas. Além das formas habituais da música litúrgica (missas e motetes), os compositores ingleses continuaram praticando sua tradicional inclinação pelos textos marianos, especialmente o magnificat, canto que utilizava a polifonia somente na metade dos versos (pares ou ímpares), alternando-o com o cantochão, sendo John Taverner (1495-1545) seu representante mais importante. Quanto à música religiosa não litúrgica, desenvolveu-se o carol, canção de Natal com várias estrofes, seguidas de um burden (estribilho). Nelas, utilizava-se o inglês e o latim indistinta e, às vezes, conjuntamente; seu sabor popular concedeu-lhe um uso didático. A duplicidade linguística que se pode observar em todas as escolas - música litúrgica, em latim, e canções populares, em linguagem vulgar -, observa-se, também, na Espanha. A maior parte dos compositores como Juan Cornago, Juan de Anchieta (1462-1523), Francisco de Peñalosa (1470-1528) e Juan de la Encina (1468-1530) serviam às cortes de Aragon ou de Castela, compondo música tanto religiosa como profana. A polifonia litúrgica espanhola caracterizou-se pela simplicidade, pelo silabismo, pela clareza do texto e pela escassez de elementos profanos. Em catelhano, o villancico (canção de Natal com quadras e estribilho) foi a forma mais comum, utilizando diferentes números de vozes sobre textos tanto profanos como religiosos. Estas composições encontram-se reunidas no Cancionero de Palacio e no de Upsala . Finalmente, na Itália, a lauda, herdeira das laude polifônicas, foi adotada pela maior parte da música religiosa. Utilizaram-se melodias populares conhecidas, modificando-se o texto original. Sua música era semelhante à frottola profana: simples, homorrítimica e silábica, sua difusão enlaça-se a certas estruturas do século XVI, como o oratório.

ORLANDO LASSO (1532-1594) Orlando Lasso entrou para a história como modelo ideal de músico, tanto social como esteticamente. Sua vida parecia não ter contratempos e não conheceu o fracasso; seu destino foi saborear o êxito; foi admirado, mimado e disputado por reis e príncipes: o imperador Maximiliano II, o rei Luís IX, da França, e o próprio Papa, que era também um príncipe, lutavam para que ele abandonasse a corte bávara, ainda que temporariamente, para deleitá-los com algumas mostras de sua arte.Viajante incansável, apesar da promessa que fez aos 24 anos - de manter um comportamento estável enquanto trabalhasse para Alberto V, o duque da Baviera -, Lasso soube assimilar e aproveitar todas as novidades que surgiam tanto no mundo católico como no luterano; e soube, também, deixar assentados os fundamentos de sua técnica e de sua imaginação sem limites em todos os lugares em que fez escala durante seus intermináveis traslados pela Europa.Lasso deixara sua pátria - Mons, na região belga de Hainaut - aos doze anos, para se estabelecer na Itália, primeiro como menino-cantor da Capela de Fernando de Gonzaga, o vice-rei da Sicília, e mais tarde como cantor em Milão, Nápolis, Florença e Roma - na Capela de São João de Latrão, sede episcopal do Papa. Todas essas mudanças se realizaram no espaço de apenas dez anos, pois em 1555 Lasso já se encontrava na Antuérpia buscando editor para as suas primeiras obras.Depois de permanecer um ano em sua terra natal, provavelmente para se restabelecer da intensa experiência italiana, passou o resto da vida na corte de Munique, onde faleceu, segundo registra a história, de demência senil, em 1594.Foi em Munique que Lasso encontrou o seu lugar, pois a música interpretada na Capela da corte não conhecia barreiras estéticas nem ideológicas. A técnica era única e aplicada indiferentemente ao religioso e ao profano, e todas as tendências eram aceitas: a villanella e o madrigal italianos, a chanson flamenga, o lieder alemão ...

Porém, e apesar de que em Munique reinasse o humanismo musical, havia certa predileção pela herança litúrgica dos antepassados flamengos: a Missa e o Moteto .
A Missa, nas suas três variedades de método musical, interpretada a três vozes desde o século XIV, teve suas estruturas estabelecidas por Dufay e alcançou o auge com Palestrina, Morales e Victoria, seus contemporâneos:
missa de cantus firmus: construída sobre uma melodia litúrgica preexistente;
missa parodia: que utilizava em sua construção fragmentos polifônicos já compostos em forma de chanson ou moteto;
missa original: na qual o compositor está livre de vínculos temáticos e elaborava não só o procedimento como também o material melódico com o qual trabalha o contraponto e a harmonia.
O Moteto é a forma litúrgica mais utilizada na estrutura musical religiosa do século XIII ao XVIII. Na Idade Média, seria o discantus, interpretando-se um tropo (ampliação de um canto litúrgico de formação melismática, mediante acréscimo ou substituição) sobre uma palavra do texto litúrgico cantada por um tenor; depois, com a Escola franco-flamenga, o tenor passou a ser cantus firmus, sustentáculo da tessitura contrapontística - o que, na verdade, não passa de um modo de evolução do discantus. Um tema para cada uma das diferentes seções do texto, desenvolvido em superposição vertical ou horizontal de sons, harmonia ou contraponto, criaria a unidade prática aplicável a qualquer estrutura litúrgica: Missa, Hino, Salmo, Lição, Responso ou Antífona.
Omnes de Saba venient e Tui sunt coeli são motetos que se interpretam no ciclo litúrgico do Natal. O texto do primeiro corresponde à primeira seção gradual da missa do dia de Reis; o segundo, ao ofertório da missa do dia de Natal.Salve Regina e Alma Redemptoris Mater são cânticos à Virgem Maria que os livros litúrgicos denominam Antífonas marianas. Sua função, desde meados do século XIV, é a de rematar o Ofício das Completas, a última hora litúrgica do dia.
Cada um dos quatro tempos do ano litúrgico, que transcorre paralelamente às quatro estações solares, interpreta a sua própria Antífona:
do Advento (quatro semanas antes do Natal) ao dois fevereiro (quando se celebra a Purificação ou festa das Candeias): Alma Redemptoris Mater;
desta festividade até a Páscoa: Ave Regina coelorum;
durante todo o tempo pascoal, que termina em Pentecostes: Regina coeli;
desta data até o novo Advento: Salve Regina.
Nunca a história do moteto escreveria páginas tão grandiosas quanto com os Salmos penitenciais (Psalmi poenitentialis) de Orlando de Lasso. Os números 6, 31, 37, 50, 101, 139 e 142, do Saltério composto pelo Rei Davi, não representam só o apogeu das sofisticadas técnicas da escola franco-flamenga, senão que significam, sobretudo, um compêndio das características técnicas fundamentais do moteto: cada versículo se enlaça ao seguinte com um diferente tema musical; cada uma das vozes entra gradualmente e de forma imitativa; o contraponto serve de contraste à harmonia; a utilização de um grupo de cinco vozes contrasta, talvez de forma concertada, com blocos a duas, três ou quatro vozes; a extensão do texto cria um moteto monumental.Os Salmos penitenciais não cumprem uma função litúrgica em sentido estrito; formam, contudo, uma estrutura completa cujo fim é ser recitada ou cantada em serviços religiosos privados e em atos de austeridade, de sobriedade, nos quais a compunção é o sentimento dominante. A prática destes atos piedosos era uma herança ideológica e gráfica da Idade Média: os Saltérios miniados, que reúnem salmos, orações e ofícios privados para o consumo de reis e senhores feudais converteram-se, com a invenção da imprensa, nos Livros das Horas, pequenos volumes que uniam a doutrina espiritual gráfica e os Ofícios privados para cada dia da semana, para cada hora do dia ou para atos de devoção especial durante o ano.Não se sabe o verdadeiro motivo que levou Lasso a compor os seus salmos. Sabe-se que os escreveu recém-chegado na capela do duque bávaro - por volta de 1556 -, regida, no âmbito espiritual, pelos jesuítas. No palácio de Alberto V (como era prática dominante também nos ducados italianos), a piedade individual e o serviço religioso privado substituíam as liturgias catedralícias; e em Munique esta piedade devia ser intensa e os ofícios especialmente solenes, porque a Baviera, na época de Alberto IV, era o único reduto da Contra-reforma numa Alemanha dominada pelo espírito protestante. A cópia manuscrita que Alberto V mandou fazer proporciona uma mostra das tendências estéticas que se gestavam na corte, um amplo panorama caracterizado por uma nova forma de sentir a música. Tão nova que, alguns anos depois, daria pé a uma forte controvérsia entre a tradição de Artusi e a vanguarda de Montiverdi, até que este último, em Veneza, soube transformá-la em prática corrente. Conservando na Biblioteca do estado bávaro de Munique, o original dos Salmos penitenciais foi copiado a mão em quatro volumes, luxuosamente encadernados, entre 1563 e 1570: dois volumes estavam destinados à música e outros dois aos comentários, ilustrados ambos com cenas bíblicas pelo pintor do duque, Hans Mülich. Estes livros explicam não só os conceitos teológicos dos salmos e a sua interpretação católica, como também a função que a música cumpre. Os comentários do médico humanista da corte ducal, Samuel Quickelberg, adiantavam conceitos que depois, no Barroco, seriam essenciais: a arte de compor consiste em expressar, através dos sons, as emoções do texto, em reviver, com uma simbologia de figuras melódicas, todas as possibilidades que oferece a acústica. "Singulorum affectum vim exprimendo, rem quasi actam ante oculos ponendo" (expor a força dos afetos, mostrar o texto como realidade diante dos olhos): esta é linguagem da grande comoção das artes plásticas da época, da união de todas as artes, defendida mais tarde pelo Barroco; é a doutrina dos afetos, das figuras retóricas que Quickelberg define como música reservata, é a fidelidade ao conteúdo emocional do texto, seu predomínio sobre a música, enfim, uma antecipação a Lasso, à essência interpretativa da Seconda Prattica montiverdiana.

Portugal: Polifonia no Séc. XVII
Do ponto de vista estilístico, podemos considerar a polifonia portuguesa do século XVII como uma continuação da tradição renascentista. Como aconteceu na Inglaterra, o uso do contraponto; que alcançou o auge com compositores do século XVI, como Palestrina, Lassus ou Victoria; continuou sendo, durante boa parte do século seguinte, uma realidade entre os autores portugueses. Enquanto, na Europa, autores como Monteverdi, Caccini, Schütz ou Rossi consolidavam as formas concertantes, o estilo recitativo, o uso do baixo contínuo ou a tradução sonora dos efeitos através de u]ma nova linguagem harmônica e tímbrica (elementos constituintes do estilo Barroco); os autores mais destacados da polifonia portuguesa, como Cardoso, Magalhães ou Duarte Lobo, mantinham, no século XVII, a sua crença na tradição renascentista mais pura.Outro elemento característico do Barroco luso é a influência, por causa da proximidade geográfica, política e cultural, das escolas espanholas na música portuguesa da época. Deve-se recordar que com a morte do rei português, dom Sebastião, na batalha de Alcácer Quibir (1578), a Coroa espanhola, na pessoa do seu rei Felipe II, anexou Portugal à Espanha até os tempos do conde-duque de Olivares (1 o Ministro de Felipe IV). A composição de um Réquiem é, para qualquer compositor, um desafio que vai além dos aspectos técnicos e circunstanciais da criação musical. Neste caso, é ainda mais, já que ao caráter hiper-transcendente de uma música destinada ao mais inevitável dos destinos humanos, têm de ser somados os importantes precedentes que dois séculos de escritura vocal renascentista haviam doado ao gênero. O Réquiem (1605) composto por Tomás Luis de Victoria é, talvez, o mais brilhante antecedente e a sua construção a seis vozes (dois sopranos, contralto, dois tenores e baixo) anuncia já as intenções expressivas pré-barrocas.O Réquiem de frei Manuel Cardoso (ilustre polifonista português) reproduzia também o elenco a seis vozes, se bem que duplicado os contraltos (dois sopranos, dois contraltos, tenor e baixo) e não os tenores. Duarte Lobo publicou uma Missa de defuntos em 1621, em que optou por um efeito sonoro ainda maior, com oito vozes, duplicando as quatro habituais; porém, não em disposição policoral, como era o costume generalizado no século XVII.Duarte Lobo nasceu em 1565. Estudou na catedral de Évora, com Manuel Mendes. Possivelmente, foi lá onde conheceu o Réquiem de Victoria. Depois de ocupar o cargo de maestro de capela da catedral de Évora, passou a desempenhar a mesma função no Hospital Real de Lisboa. Em 1594, já era maestro de capela na catedral da capital portuguesa. Duarte Lobo gozou, em vida, do mais alto reconhecimento, sendo para muitos o autor português mais notável do seu tempo. Morreu em 1646. Por desgraça, o terremoto de Lisboa de 1755 destruiu uma grande parte da obra deste compositor.

Espanha: Música e Músicos
A Inglaterra e a Espanha têm impressionantes afinidades musicais. Ambos os países tiveram períodos medievais ricos e fascinantes, nos quais as invasões e os governantes de várias nacionalidades fizeram com que se abrissem a influências amplamente diferentes do exterior.As conquistas dos compositores medievais foram eclipsadas por quase dois séculos de absoluta maestria na música polifônica vocal da Renascença. O declínio veio no século XVIII, embora um estranho raio de luz ainda iluminasse um cenário bem árido.
DOS MENESTREIS MOUROS A FANTASIAA Espanha sempre trouxe imagens musicais fortes à mente das pessoas. Muitas vêm do gosto muito característico pelo instrumentos típicos das suas várias regiões.A invasão moura, em 711, trouxe numerosos instrumentos, que acrescentaram uma vibração sem precedentes aos sons disponíveis aos compositores da Península Ibérica. Entre eles, havia diversos instrumentos de percussão, como o bandair (tamborim) e o ud (alaúde). Este último foi particularmente favorecido pela sorte, pois a Espanha desenvolveu um apetite sem fim por instrumentos de cordas dedilhadas, destacando a vihuela (misto de alaúde e violão) e o próprio violão, um símbolo permanente da Espanha. Em seu celebrado Libro de buen amor, Juan Ruiz, arcebispo de Hita, cita uma lista enorme de instrumentos utilizados no século XIV. Ele evoca um espetáculo contagiante de cordas, sopros e percussão prorrompendo em "um canto de aclamação multicolorido", como os pássaros da primavera recém-descobrindo seu poder de cantar (de A Short History of Spanish Music, de Ann Livermore).Sabe-se que muitas das músicas seculares e litúrgicas foram escritas ou improvisadas durante o período medieval. Os cristãos, muito menos intolerantes nesta época do que alguns séculos mais tarde, deliciavam-se com as atividades dos menestréis mouros, bem como preferiam seus fabricantes de instrumentos. Infelizmente, pouca coisa sobreviveu ao tempo, e o que existe nos famosos manuscritos de Calixtine e Las Huelgas têm uma forte influência internacional, chegando à elegia e à polifonia inglesa.O início da Renascença assistiu à criação da Espanha moderna, com o casamento de Fernando de Aragão e Isabel de Castela, em 1492, que unificou os dois estados mais influentes da península. Apesar de que um dos primeiros atos do casal foi a criação da famosa Inquisição, esta foi uma época grandiosa e, de várias maneiras, muito liberal para a música espanhola.A composição secular floreceu como sempre e tinha não apenas os sons distintivos das várias línguas espanholas, mas também formas de versos característicos que, ao serem musicados, frequentemente remetiam à música folclórica. O Romance e o Villancico foram as principais formas. Sendo o Romance uma expressão literária, baseada numa espécie de canto popular, e a palavra Villancico servindo para virtualmente tudo na música espanhola que tivesse um refrão preliminar, independente da existência da palavra "coro"; com efeito, a palavra queria dizer canção espanhola que não deveria ser confundida com o Romance.Juan de Encina é o compositor mais conhecido. Sua música é altamente expressiva, e ele compôs melodias com um sotaque espanhol característico, obtido pela citação ou imitação de canções ou danças folclóricas. Sua carreira coincide precisamente com os grandes eventos de 1492. O século XVI assistiu à publicação de uma vasta coleção para a alaudística vihuela, um dos instrumentos mais intimistas e mais belos do período. Fantasias ornamentadas de Luis de Milán estão lado a lado com variações maravilhosas sobre linhas ou melodias do baixo tradicional; no século XX, Rodrigo pôde "se apropriar" da Canarios, de Gaspar Sanz (uma versão mais recente de um número de dança popular) sem comprometer de forma alguma a modernidade popular de seu Concerto para Violão.

MÚSICA CELESTIALO século XVI é dominado pelo grande triunvirato de Morales, Guerrero e Victoria. Eles escreveram principalmente música sacra, no extraordinariamente popular estilo polifônico do período. Não era música a capela, pois todas as indicações são de que as capelas e catedrais empregavam instrumentistas para missas e outros eventos. Mas o estilo é comparável ao de Byrd, Palestrina e Lassus. As partes se "movimentam" com pontos em comum, a dissonância é estritamente controlada e as linhas melódicas frequentemente se baseavam em material já existente, como uma canção ou moteto popular. Não dá para dizer que a música soe espanhola, mas muitos apontam as qualidades expressivas da música, notavalmente, sua preocupação com o texto (Palestrina opta geralmente por algo mais generalizado); isto pode ser ouvido de maneira mais nítida no extraordinário Réquiem de Victoria. Sua música tem também uma qualidade elevada e mística, bem peculiar à Espanha da época. Estes três compositores são o autêntico pináculo da música espanhola. Assim como a Espanha chegou aos céus com sua música coral, os fabricantes de órgãos fizeram coisas espantosas em vários séculos, produzindo instrumentos de cores surpreendentes e caixas lindamente ornamentadas.Antonio de Cabezón foi o primeiro grande compositor para órgão; suas obras mostram um gênio para a variação e estão cheias de mecanismos contrapontísticos intrincados. Ele foi sucedido por uma séria de grandes organistas, como Joan Baptista Cabanilles. A tradição de teclado continuou no século XVIII, com Antonio Soler, e obteve destaque no renascimento do final do século XIX.

O MAGNETISMO DA MÚSICA ESPANHOLAA Espanha carregava o fardo de estruturas políticas e religiosas ortodoxas; seus governantes gostavam da pompa e do poder militar; quando invadiram a Inglaterra, colocaram canhões tão pesados no convés de suas embarcações que não podiam ser armados e disparados a tempo de eles se defenderem do ataque dos ingleses. Não surpreende que um país que se regozijava no espetáculo desenvolvesse um gosto por grandes sinfonias de batalhas para órgão ou combinações instrumentais. Isso passou a fazer parte até mesmo das missas. Joan Cereols (1618-80) sofreu, como todos os compositores espanhóis do século XVII, com a ausência da técnica de impressão de música na Península Ibérica, e suas partituras restantes são caracteristicamente escassas em especificações musicais. Entretanto, elas incluem uma linha de acompanhamento, indicando o uso de instrumentos. Sua Missa de Batalla (Missa de Batalha) é arranjada de maneira esplêndida para três coros, e pode ser (nunca saberemos o quão autenticamente) acompanhada, com extraordinário efeito, por cordas, sopros e percussão.A discussão sobre música espanhola não seria completa sem mencionar os numerosos compositores estrangeiros atraídos por seus idiomas nativos.Em suas numerosas sonatas para teclado, Domenico Scarlatti inspirou-se no violão, que então dominava o repertório para cordas dedilhadas, e muitos anos mais tarde, compositores do final do século XIX e do início do século XX rivalizavam-se em suas obras no estilo espanhol. Boa parte da melhor música nesta categoria vasta foi de Debussy e Ravel, cujos resultados, por sua vez, causaram profundo efeito nos compositores espanhóis.A ópera em vernáculo, na Espanha, esteve, como na maioria dos países, constantemente ameaçada pela ópera italiana. Entretanto, a zarzuela mostrou-se versátil. Era um tipo de ópera espanhola com diálogos, bem parecida com o Singspiel alemão, embora mais antiga (as obras mais conhecidas são de Juan Hidalgo, datando do final do século XVII).Apesar dos vários desafios enfrentados, a ópera espanhola renasceu grandemente no século XIX, e vem prosperando desde então.

Música Vocal no século XVI
As características mais destacadas do século XVI são:
- A culminação da música sacra polifônica - A ascensão e o desenvolvimento do madrigal na Itália - A breve mas brilhante obra dos madrigalistas ingleses - Os efeitos da Reforma - A ascensão da música instrumental
Na obra de compositores como Isaac e Josquin des Près, a técnica contrapontística da escola flamenga tinha atingido um alto nível de competência e era aplicada à produção de música de real expressividade. Os grandes compositores do século XVI alcançaram ainda maior competência e expressividade em suas Missas e Motetes, estando as realizações supremas nas obras de Palestrina, Victoria, Lassus e Byrd. O Motetos, do qual os alicerces pós-Machaut tinham sido criados por Dunstable e fortalecidos por Dufay e seus sucessores, assumia agora enorme importância. No Moteto verdadeiramente polifônico, os princípios estruturais gerais são os seguintes: cada frase sucessiva de palavras é introduzida por um "ponto de imitação" ou "fuga", (note-se que essa técnica de imitação é importante não só como um método estrutural do século XVI, mas também como origem fundamental, a qual atingiu o seu clímax de perfeição nas mãos de J.S. Bach) entrando as vozes uma após outra com a mesma figura melódica, embora não necessariamente na mesma altura de som. Essa figura é usada, geralmente com repetição bastante considerável de palavras, a fim de construir uma "seção" completa; cada seção encerra-se com cadência e, como regra, a figura para o ponto de imitação seguinte surge dentro dessa cadência, pelo que as seções são entrelaçadas. Assim, é criada uma teia contrapontística contínua de som. Os motetos eram escritos para três a oito vozes, embora existam exemplos extravagantes ocasionais, como Spem in alium, de Thomas Tallis, para quarenta vozes, num arranjo para coros em oitenta e cinco partes.Tallis não foi o único compositor do século XVI a tentar uma tarefa de tamanha magnitude e complexidade, mas foi o único a conseguir produzir música real sob tais condições. Entretanto, os motetos não eram sempre e inteiramente contrapontístico em sua tessitura; havia dois outros métodos comuns de procedimento. Um é quase inteiramente sem acordes, com pouco ou nenhum movimento realmente independente das vozes. Ave Verum Corpus, de Victoria, e O Bone Jesu, de Palestrina, são bons exemplos. O outro tipo situa-se entre o puramente polifônico e o sem acordes. Baseia-se não tanto na técnica imitativa quanto no contraste de grupos variáveis de vozes dentro do coro que consistia em não menos de cinco vozes. Há relativamente pouco uso do coro pleno, mas a variação nas combinações usadas é explorada até o limite - uma espécie de orquestração vocal. Tu es Petrus, de Palestrina, é um exemplo desse tipo de motete, e o mesmo método é usado com grande eficácia na Missa em cinco partes de Byrd. Em motetos mais extensos, os três estilos podiam ser usados para diferentes seções. Deve-se ressaltar que o tipo de moteto sem acordes manifesta um crescente sentimento pelos acordes e progressões de acordes como tais. Pode-se afirmar que, nas obras polifônicas do período, os acordes nascem do entrelaçamento de linhas melódicas e ritmicas simultâneas, a tessitura é concebida horizontalmente e as progressões de acordes são, por assim dizer, incidentais. Mas numa obra como Ave Verum Corpus parece evidente que Victoria devia estar pensando em termos de acordes, atitude que de agora em diante assumirá importância cada vez maior. A mesma atitude é bastante clara numa passagem como a abertura do Stabat Mater de Palestrina.O material básico para Missas e Motetes era freqüentemente extraído cantochão. O uso do cantus firmus secular para missas estava se extinguindo rapidamente. No começo de sua de carreira, Palestrina escreveu algumas Missas sobre cantus firmi seculares, incluindo duas sobre L'Homme armé, mas de um total de noventa e três, muito poucas baseiam-se nesse material.



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1 comentários:

Unknown disse...

E não se esqueça que a Batalha levou à apoteose o órgão ibérico; único no mundo por possuir um jogo de tubos disposto horizontalmente; O Baxoncillo [Grave]/ Clarín [Agudo] de la Trompetería Magna, que é um jogo assemelhado com o trompete e o fagote [é palhetado tb], que deixa o som ainda mais forte do que fosse verticalmente.

Além disso, o teclado é partido, em tiple e baixo, de modo a combinar 2 sons muito diferentes num mesmo tento ["concerto" de órgão] ;)