Polifonia (Ambiente medieval)

Polifonia

As comparações entre músicas de diferentes culturas proporcionam perspectivas esclarecedoras; o que aconteceu com a música ocidental na época das Cruzadas foi fundamental. Não foi nada menos do que a criação da polifonia, música para mais de uma parte ou voz, que levaria inexoravelmente à criação da harmonia e intensificaria a necessidade de um sistema de notação adequado. Talvez essa evolução esteja ligada à necessidade de se fazer ouvir individualmente e não como uma massa, ou à descoberta de que os interiores de pedra das igrejas amplificavam a voz e lhe davam mais ressonância. A mudança começou imperceptivelmente, de início, com as vozes em uníssono na oitava, acomodando diferentes faixas de baixo e tenor, de contralto e soprano. Depois, era acrescentada uma terceira voz, cantando no intervalo de uma quinta acima da voz mais grave. Com certeza isto era mais do que mera conveniência. A harmonia aberta simples tinha uma clareza austera, penetrante, como os harmônicos ressonantes dos monges tibetanos. Não foi tão grande o salto dessa harmonia simples para a idéia de começar em uníssono, separando-se da quarta ou quinta, e voltando a se juntar. E ainda assim o processo levou cerca de duzentos anos. A prática era conhecida como Organum , um termo extraído do latim, significando todo o corpo de recursos para fazer música - instrumentos e vozes. Parece provável que algumas dessas idéias tenham sido extraídas da música popular. De início, o Organum foi uma prática improvisada e o Cantochão ainda era ensinado como uma única linha. Foi precisamente por essa época que houve o cisma da Igreja Católica: a Ortodoxa Oriental, com base em Constantinopla, e a Católica Romana, em Roma. A tendência para a divisão há muito tempo se fazia clara, e quando a separação realmente ocorreu, em 1054, a Igreja Ortodoxa Oriental manteve a prática do Cantochão uníssono.

Um lugar fascinante para se acompanhar a mudança de som da música ocidental é a Espanha. Lá os Mouros tiveram supremacia durante várias centenas de anos, exceto no quadrante noroeste, cujo centro era a cidade de Santiago de Compostela. A tradição cristã sustentava que os ossos do apóstolo Tiago estavam enterrados lá. Os Mouros exibiam uma poderosa relíquia que possuíam - o braço direito mumificado de Maomé, para lembrar aos cristão espanhóis o poder islâmico. No século IX, o descobrimento do túmulo de São Tiago pareceu uma revelação enviada por Deus; embora a prova fosse discutível, o lugar imediatamente se tornou um ponto de peregrinação. O próprio Carlos Magno o visitou. Os fiéis chegavam às centenas de milhares. Seu avanço, saindo da França, da Inglaterra, dos Países Baixos, da Escandinávia, da Alemanha, era facilitado por hospedarias estabelecidas pelos monges do Mosteiro de Cluny, na parte centro-leste da França. Dizem alguns que esse reinado religioso de Cluny estendia-se a dois mil locais, mas é provável que o número esteja abaixo de 350 - o que ainda é um reino considerável para a Europa daqueles tempos -, e a rota de peregrinação para Santiago era sua espinha dorsal. Os cristãos passaram a acredita que uma visita a três lugares - Jerusalém, Roma e Santiago de Compostela - assegurava permanência na eternidade. Um dos propósitos das Cruzadas, que tiveram início em 1096 d.C., foi a tomada de Jerusalém. Sua conquista ao fim de três anos causou um estremecimento de júbilo no Ocidente, especialmente entre os peregrinos de Santiago, que se tornou o local de inspiração nas guerras entre os cristãos e os mouros. Ao longo dessa rota ouvia-se uma imensa variedade de música, pois entre as pessoas de todas as partes da cristandade havia um intercâmbio de canções, cantos, danças. A catedral de Santiago foi erigida, destruída e erigida novamente. A catedral que hoje se vê tem uma fachada do final do século XVII, ocultando a antiga entrada principal do século XII com seus arcos nobres. Lá encontramos um dos melhores exemplos do papel vital que a música desempenha na vida do povo e da igreja. No arco central, conhecido como Portico de la Gloria, acha-se gravado todo um instrumentário medieval. No ápice do arco há um primitivo instrumento de teclado portátil para dois executantes; um virava uma manivela e o outro tocava. Em outros pontos encontramos tocadores de viola e cordas dedilhadas, alguns parecendo transfixados por seus próprios sons. Curiosamente, não há instrumentos de sopro ou metais (a proibição contra instrumentos fazia-se valer de tempos em tempos). Essa música deve ter tido uma esplêndida ressonância nessa bela catedral, uma das mais antigas do Período Gótico, e com certeza ela foi enriquecida pela famosa escola de composição lá estabelecida na mesma época. Foi também na Espanha que as três principais religiões monoteístas, todas originadas no Monte Sinai, se juntaram novamente, uma fusão que teve muito a ver com o som singular da música espanhola. Os mouros continuavam tolerantes para com todos os povos que haviam encontrado na Península Ibérica, porque não havia mouros em número suficiente para colonizar a área toda. Judeus e cristãos que não desejavam converter-se ao islamismo tinham permissão para continuar sem serem perturbados, embora os mouros habilmente exigissem deles um imposto especial em troca de sua tolerância. Os cristãos inconversos passaram a ser conhecidos como moçárabes, que pode ser traduzido como falsos árabes ou árabes imaginários. Sob a influência mourisca, sua antiga forma de cantochão tornou-se mais ornada e, muito depois que os mouros se foram, os moçárabes agarraram-se à sua tradição, resistindo a todas as tentativas para que se conformassem às práticas de Roma. Seu centro era a cidade de Toledo. Lá ainda se observa o rito moçárabes até os dias de hoje, na capela da igreja de Santa Maria la Blanca, pelas poucas famílias ainda remanescentes. Elas nos remetem ao tempo em que, há mais de mil anos, o mouro e o cristão aprenderam a viver lado a lado. As Cruzadas foram mais do que um choque de espadas - foram um choque de culturas, artes e ciências. Quando os cruzados penetraram na África do Norte e no Oriente Próximo, entraram em contato com povos diferentes que seguiam sua própria tradição musical, e os cristãos se surpreenderam com a força dessa música. O instrumento de palheta dupla, a charamela, que desde então se desenvolveu dando origem ao oboé e ao fagote, lá florescia em uma grande diversidade de tamanhos e timbres. Alguns tinham o volume e a intensidade de um trompete, e a banda militar islâmica, com dúzias desses instrumentos, era capaz de produzir um som ensurdecedor e terrificante. Os muçulmanos eram um povo diversificado, unificado pelo islamismo, como o cristianismo havia unificado a Europa. Os mouros marroquinos, por exemplo, consideravam-se completamente distintos dos da Espanha, e no ano 800 d.C. já existia um bairro espanhol na velha capital marroquina de Fez, ocupada pelos mouros repatriados. Não se pode reconstituir o espírito que animou os cruzados, do mesmo modo que não se pode sentir o esplendor que a música deve ter tido para os exércitos que voltavam para casa, nas grandes catedrais góticas francesas que se erguiam em Saint Denis, Laon e Chartres, e mais tarde nas da Espanha, em Burgos, Leon e Toledo. Força subversiva foi a presença da música profana: a poesia lírica aristocrática dos Troubadours , cantada nos castelos, e a poesia lírica popular, cantada nas aldeias. Essa música foi, mais tarde, chamada de Ars Antiqua. Mas Antiga ela só é em relação a outra, posterior: Ars Nova. No século XIII, a Ars Antiqua era nova; é a arte que pertence à chamada Renascença do século XIII , florescimento das cidades e construção das catedrais, vida nova nas Universidades, tradução de Aristóteles e de escritos árabes para o latim e elaboração da grande síntese filosófica de São Tomás de Aquino. Houve, dentro do Coral Gregoriano, o germe de uma evolução: a contradição entre a obrigação de acompanhar fielmente o texto litúrgico, à maneira de recitativo, e, por outro lado, a presença de tão rica matéria melódica, os melismos que se estendem longamente quase como coloraturas , sem consideração do valor métrico da palavra. Essa contradição levaria à divisão das vozes: uma, recitando o texto; outra, ornando-o melodicamente. São essas as origens das primeiras tentativas de música polifônica, do Organum e do Discantus . Os primeiros textos da Ars Antiqua foram encontrados na biblioteca da igreja de Saint-Marcial, em Limorges. Mas o desenvolvimento dessa nova arte realizou-se na Schola Cantorum da Catedral de Notre Dame de Paris. Registra-se a atividade de um Magister Leoninus. Mas o grande nome da Ars Antiqua é seu discípulo e sucessor na direção daquela escola parisiense por volta de 1200, Magister Perotinus; na história da nossa música, é o primeiro compositor que sai da obscuridade do anonimato. Várias obras de Perotinus encontram-se no manuscrito H196 da biblioteca da Faculdade de Medicina de Montpellier e no Antiphonarium Mediceum da Biblioteca Laurenziana em Florença. A Notre Dame de Paris tornou-se o centro da música ocidental, quando a própria França passou a ser o foco da vida cultural da Europa medieval. Essa música tem a marca inconfundível da Europa, especialmente nos trabalhos dos dois primeiros compositores cujos nomes chegaram até nós - Léonin e Pérotin, que atuavam como mestres de música em Notre Dame entre 1150 e 1236. Sua prática do orgamun constitui uma verdadeira revelação, como os raios do sol filtrados através do extraordinário vermelho e azul dos vitrais da catedral. Pela primeira vez, três e quatro vozes distintas podiam ser combinadas em partes que não eram improvisadas, mas sim o produto de um único artista criativo. As harmonias eram controladas por seu senso de compatibilidade de intervalos e condução de voz. Nessa música, os únicos intervalos regularmente tolerados eram a oitava, a quinta e a quarta. As terceiras e as segundas eram admitidas como perturbações momentâneas, ocasionadas por movimentos independentes das vozes. Em Organum para três ou quatro vozes, cada parte parece ter sido acrescentada separadamente sobre um Cantus Firmus , ou canto de acompanhamento, geralmente extraído do cantochão. Era mais importante que as vozes acrescentadas combinassem mais plenamente com o Cantus Firmus do que entre si. O número de vozes distintas usadas no Organum parece que estava relacionado à importância da ocasião no calendário eclesiástico, como por exemplo o trabalho a quatro vozes de Pérotin, longo e maravilhosamente elaborado, que começa com as palavras Sederunt Principes . Em tal música, uma única sílaba do Cantus Firmus pode ser mantida, por um minuto ou mais, como um suporte, enquanto as outras vozes elaboram os ornamentos. As cópias escritas da música de Léonin e Pérotin devem sua sobrevivência à sua fama, porque ela se estendeu para muito além de Paris. A Escócia, a Itália e a Alemanha têm sido as melhores fontes. Mas o trabalho de cópia deve ter sido feito pelos Monges Irlandeses , que se encontravam entre os mais capazes transcritores de música, e que eram recrutados já no tempo de Carlos Magno para as escolas capitulares no continente. Notre Dame, portanto, não era um tesouro antigo; era a estrutura mais nova e mais alta de Paris, e suas duas torres podiam ser vistas por toda parte. Dentro da catedral não havia fileiras bem arrumadas de genuflexórios, mas palha e estrume de animais de passo lento, levados para dentro durante o frio do inverno por seus proprietários. Com o mal tempo, o mercado na praça em frente à igreja se esvaziava: compradores e vendedores procuravam abrigo e calor sob o teto do templo. As regras para a música estabelecidas em Notre Dame baniram todos os intervalos, exceto os mais puros. Porém, ao mesmo tempo, longe dos esplendores de Paris, ouvia-se um outro som, o de vozes que se movimentavam em terceiras paralelas. Para a rigorosa mente eclesiástica francesa, essas harmonias eram bárbaras, um caminho certo para o diabo - ter-se-iam originado com as canções populares e, por isso, associavam-se ao carnal e ao sensual. Nas Ilhas Orkney, ao norte do território principal da Escócia, foi descoberta uma das mais antigas provas do uso de terças paralelas, o Hymn to Saint Magnus , um santo padroeiro da região. Constitui um dos muitos indícios de que a prática tenha vindo da Islândia e da Escandinávia, onde as terceiras paralelas não eram proibidas. É provável que os Vikings tenham gostado de música cantada em terças paralelas, já na idade do ferro sua trompa de metal, o Lur , estava bastante disseminada. Provavelmente, os etruscos trouxeram para a área a arte de trabalhar o cobre, e as trompas metálicas em pares e grupos já eram conhecidas no início dos tempos romanos. Esses instrumentos têm bom som quando tocados ao intervalo de terças. Talvez isso tenha influenciado a prática musical na canção, particularmente depois da conquista da Inglaterra, no século XI, onde os duetos de todas as espécies eram populares, incluindo os instrumentos que se destinavam à dança. Os mestres de música ingleses foram os primeiros a declarar oficialmente que o intervalo de uma terça era aceitável. Desse período vem um exemplo que continua sendo tão famoso e que ainda hoje é cantado, o célebre Sumer Is Icumem In . Embora o manuscrito que o contém tenha sido escrito por volta de 1260, e o cânone tenha sido acrescentado duas ou três décadas mais tarde, a música é bem mais antiga e já era amplamente conhecida. As instruções medievais dizem que a peça deve ser cantada por quatro vozes, cada qual entrando em uma distância determinada, acompanhada por duas vozes mais graves e, provavelmente, reforçadas por instrumentos. A maioria das canções ou cânones podia ser prontamente transmitida ao ouvido, mas isto era muito difícil, e as variações melódicas muito sutis; era fácil perder o fio. Sumer tinha de ser escrito para garantir que os cantores a reproduziriam corretamente e, dessa forma, o ensino se tornasse mais fácil. Subsiste como uma obra-prima pela sua engenhosidade técnica e apelo imediato e, também, porque sua dificuldade representa um desafio. É preciso que se note algo crucial com respeito a essa canção: quando todas as suas vozes soam em conjunto, elas se mesclam em dois acordes alternados, que contêm a semente de algo extraordinário, o efeito mais poderoso que conhecemos na harmonia ocidental: a tensão estabelecida entre a nota tônica e o acorde que serve de porta que conduz a ela. É uma ironia maravilhosa o fato de uma das provas mais primitivas desta descoberta musical ter chegado até nós no manuscrito de uma canção popular. Em muitas áreas da evolução cultural o fato precede o registro; pode ser que a própria notação tenha detido o progresso harmônico, porque por muito tempo não conseguiu atender ao desafio de transcrever o que o ouvido aceitou imediatamente. A polifonia parece ter sido uma arte norte-européia e o seu desenvolvimento em Compostela deve ter sido uma espécie de esporte. A mais antiga coletânea de obras de Compostela, o Codex Calixtinus, é um volume de aparência muito moderna para o século XII, utilizando uma notação do cantochão em quatro linhas antes do seu uso universal; mas a grande maioria das obras que ele contém consiste em cantochão, e a mais famosa das obras polifônicas dele, o Congaudeant catholici, é atribuída a Mestre Alberto de Paris . Manuscritos ingleses da época contêm obras importadas da França que serviam como modelos para os compositores ingleses, mas a música polifônica só apareceu mais tarde na Itália e na Alemanha. A importância do desenvolvimento musical em Notre Dame pode ser avaliada pelo fato de que os seus líderes, Léonin e Pérotin, foram os primeiros compositores a saírem do anonimato, que era o destino natural do músico medieval, e mesmo assim conhecidos da posteridade por apelidos; cada nome é um diminutivo: Leãozinho e Pedrinho. Léonin atuou entre 1150 e 1180, e Pérotin provavelmente continuou a sua obra, ao que parece depois de começar como um dos integrantes do coro de meninos de Léonin, até cerca de 1230. Ambos trabalharam no que era então uma nova catedral, pois o edifício do coro da Notre Dame só foi concluído em 1183. Pouco se sabe sobre ambos, mas parece que Pérotin era subchantre, ou primeiro baixo, do coro da catedral. A súbita atividade revolucionária dos músicos na França e Espanha durante o século XII é apenas parte de um desenvolvimento muito maior da vida intelectual européia. O comércio e a organização municipal mostram a influência das novas idéias e os modos progressistas de pensar; o peso e a solidez do estilo arquitetural conhecido na Bretanha como normando ocasionou maior riqueza e requinte do gótico; floresciam a literatura e as artes fora da igreja; foram lançadas as pedras angulares da filosofia escolástica, não apenas por Pedro Abelardo , cujas idéias revolucionárias tanto quanto sua vida tragicamente escandalosa foram causa de sua perseguição pelos tradicionalistas, mas pelos filósofos europeus muito mais ousados na especulação que os mestres subseqüentes da escola. As universidades foram fundadas atendendo ao novo desejo de conhecimento, e por sua existência estimulavam o pensamento especulativo e novas idéias, não só em teologia e filosofia, mas também em música, que era parte do currículo normal da universidade em virtude de sua aliança com a teologia, como assunto prático, e com a filosofia, como ilustração matemática de idéias filosóficas. De muitos modos o surgimento das cidades teve tanto efeito quanto o novo prestígio da música e estudo acadêmico da sua teoria. Nas cidades a música tornou-se uma necessidade social e cerimonial com a formação das bandas citadinas de guardas, Standtpfeifer e Pifferi que tornaram a música instrumental mais popular e respeitável. Ao mesmo tempo, os cidadãos abastados davam cada vez mais dinheiro à Igreja para possibilitar parte de todo esse desenvolvimento. Inevitavelmente, o tipo de música ouvido fora da Igreja começou a influir na música ouvida dentro dela. A introdução de instrumentos no culto levou o compositor religioso às técnicas, ritmos e estilos melódicos empregados na música secular. É certo que a música secular dos séculos XII e XIII, com seus ritmos dançáveis e os idiomas melódicos dos compositores de Limoges e Notre Dame, introduziram tanto falas como os instrumentos do mundo secular na Igreja; mas é impossível acreditar que o novo estilo tivesse saltado já plenamente desenvolvido para a liturgia. Possivelmente Sumer is icumen in projete alguma luz sobre a questão das influências populares nos primeiros dias da polifonia religiosa. A complexidade contrapontual de um cânon a quatro vozes sobre um baixo de apoio contínuo não era simplesmente a música de uma canção ligeira, mas hino cristão, o Perspice christicola , cantado na Abadia. Orientações em latim, anexas ao texto religioso, explicam como a semibreve deve ser cantada, sugerindo que os cantores do Convento de Reading não estavam familiarizados com um contraponto tão altamente desenvolvido. Mas o contraponto naquele grau de aperfeiçoamento não podia surgir plenamente evoluído sem ter um lugar de origem; perece que fora do Convento de Reading essas proezas técnicas não eram incomuns e que algumas pessoas tinham acesso a elas, e o ágil ritmo 12 por oito da canção não está tão longe das vivazes partes superiores escritas em São Marcial e Notre Dame. A primeira mudança no sentido da liberdade na música religiosa deu-se mediante o Conductus , que tinha um texto metrificado e era, como o seu título declara, música processional, influente por exigir música em notação compassada e vozes movendo-se juntas homofonicamente, e através das Clausula , nas quais um texto em prosa era musicado de modo cantochânico para tenor e duas ou três mais vozes que se moviam, não homofonicamente no mesmo ritmo, mas polifônica e livremente contra ela. A Clausula já era parte integrante de liturgia, mas o Conductus e o seu sucessor, o Moteto , eram acréscimos ao texto do ritual e podiam por isso ser tratados com maior liberdade pelo compositor. O Moteto , que se tornou a mais influente das formas musicais primitivas, aparentemente introduziu-se na Missa como acréscimo musical que se seguia ao Gradual . O Gradual era cantado, como o Cantochão sempre fora, por todo o corpo de cantores, ao passo que o Moteto era função de qualquer grupo de cantores preparados para executar a polifonia. Naturalmente, o Moteto tirou vantagem das liberdades implícitas em ser uma intromissão extralitúrgica e devocional no serviço. Não raro tinha um texto, ou pelo menos se referia a ele, usado na liturgia em outros contextos, de modo que tinha também um cantochão em seu teor como em sua base musical, mas evoluiu numa variedade de aspectos estranhos e objetáveis para os tradicionalistas. Ele admitia acompanhamento instrumental e juntava diferentes textos nas diversas vozes; havia Motetos nos quais quatro ou cinco notas de uma melodia cantochânica eram tudo de que o compositor precisava; era, em outras palavras, a mais fecunda e influente das formas que a Igreja medieval desenvolvera, e os desafios que oferecia levaram a considerável evolução da técnica. Essa a razão pela qual em pouco tempo se transferiu das salas de banquete da aristocracia e veio a se tornar uma forma secular e religiosa - não raro parecendo uma canção para solo vocal com as suas demais partes (vozes) polifônicas destinadas a instrumentos. Isso não isentava o compositor do contato com as palavras essenciais da liturgia. Só era permitido ao compositor glorificar o serviço mediante acréscimos aos seus textos.
Os Tropos davam oportunidade ao escritor das Clausulae mas o prendiam de antemão a uma melodia cantochânica e ao texto que cresceu nela, de modo que, com o tempo, o Conductus e o Moteto mais livres foram mais promissores na evolução musical. Embora o trabalho dos compositores fosse extralitúrgico, expunham-se aos invariáveis argumentos sobre o uso de música excessivamente complicada no culto. Quando o canto da Missa e dos Ofícios, relativamente cedo em sua história, ficou tão complicado que só cantores treinados podiam executá-los bem, as autoridades mais severas protestaram, alegando que a magnificência da música desviava a atenção das palavras do ritual, e observavam também que os movimentos, gestos e expressões faciais dos cantores ao cantarem música difícil eram, por sua vez, pouco edificantes e perturbadores da atenção. A vitória da música sobre os seus detratores mostra-se pelo simples fato de que o refinamento do canto tornou-se costumeiro por toda a Europa. Quando os estilos musicais mais revolucionários irromperam na música religiosa nos séculos XI e XII, igualando pelo som o vigor e inconvencionalidade dos edifícios nos quais ela era cantada e a riqueza da decoração visual que eles admitiam, o espírito reacionário exprimiu-se vigorosamente. A situação é difícil de esclarecer; enquanto a música harmoniosa, rítmica, compassada, e o acompanhamento instrumental se tornavam cada vez mais comuns, mesmo uma ordem religiosa tão severa como os cistercienses - descendentes dos beneditinos e criada como protesto contra o que São Bernardo, seu criador, achava ser conforto e luxo da antiga ordem - observava em 1217 que em algumas de suas casas os monges estavam cantando música a várias vozes, e no século XIV permitia construção de órgãos em suas igrejas. Entretanto, já em 1526, o superior da Ordem na Inglaterra insistia em que a abadia em Thame parasse de cantar música polifônica. Nenhum edito do tipo mais tarde em vigor controlou a música cantada durante a liturgia; não, talvez, que as autoridades estivessem dispostas a tolerar qualquer coisa, mas porque a gama e variedade de práticas em uso nunca foram de todo apreciadas por quem pudesse achar necessário o controle. Portanto, enquanto vários fatos ocorriam, Aeldred, que era abade de Rivaulx em meados do século XII, protestou contra a música religiosa requintada em termos que encantaram o puritano William Prynne, que 500 anos depois os traduziu em vigoroso, robusto e admirável inglês de panfletista puritano:
Para que tem a igreja tantos órgãos e instrumentos musicais ? Para que fim, pergunto, esse terrível soprador de foles, exprimindo mais os estrondos do trovão que a suavidade da voz ? Para que servem a contração e inflecção da voz (...).Enquanto isso, o povo conivente, tremendo e espantado, admira o som do órgão, o ruído dos címbalos e instrumentos musicais, a harmonia de gaitas e trombetas.
H. Davey. History of English Music. 1921 2ª ed.
John of Salisbury, erudito de reputação internacional no século XII, era também vigoroso em sua oposição às "enervantes execuções feitas com todos os artifícios da arte. Pode-se pensar em canto de sereias, mas não de homens, e fica-se espantado ante a facilidade dos cantores, de fato, incomparável com a do rouxinol, a do papagaio, com qualquer coisa existente de mais notável nesse tipo. (...) Em tudo isso, as notas altas ou mesmo as superiores da escala misturam-se de tal modo com as baixas e mais graves que os ouvidos ficam quase privados do seu poder de distinguir" [citado em H. E. Wooldridge. Oxford History of Music]. John de Muris, cônego de Paris e mestre da Sorbonne, falecido em 1370, era ainda mais ardoroso ao denunciar os excessos 200 anos depois, protestando com aparentemente excessiva violência contra o escândalo do que ele chamava, na terminologia da época, música "colorida":
O Magnus abuses! Magna ruditas! Nam inducere cum deberent delectationem adducunt tristitiam (...) Mihi non congruis, mihi adversaris, scandalum tu mihi es; utinam taceres; sed deliras et discordus.
Apesar de tudo isso, a intromissão de música estranha ao cantochão no tratamento das próprias palavras litúrgicas, diferentemente de acréscimos extralitúrgicos ao texto do ritual, não parece ter seguido qualquer norma estrita e não foi automaticamente sujeita a censura pelas autoridades. Os queixosos cujas palavras foram utilizadas para representar a atitude conservadora não eram, afinal, autoridades musicais ou administrativas; exprimiam apenas objeção de ordem pessoal, embora influente, de religiosos, a algo de novo que achavam ser uma degradação do real propósito do culto. Em muitos lugares a música polifônica, como o Moteto , insinuou-se no serviço entre as seções da liturgia, porém as grandes obras dos compositores de Notre Dame eram não só litúrgicas, mas aparentemente encomendadas por autoridades eclesiásticas. O Liber organi , através do qual suas obras ficaram conhecidas, contém seqüências de textos litúrgicos para a Missa e os Ofícios. Pode-se inclusive historiar a origem de algumas delas. O bispo Eude de Sally, em 1198, divulgou um edito a pedido do Papa, instituindo a comemoração da Festa da Circuncisão em 1º de janeiro, em lugar da duvidosa comemoração dos estudantes, a "Festa do Jumento", que antes ocupava o dia, e esse edito mencionava especificamente a música que seria cantada:
O responsório e Benedicamus [nas Vésperas] podem ser cantados como um triplum, um quadruplum, ou em órgão (...) O terceiro e sexto responsórios [nas Matinas] serão cantados em órgão, em triplum ou em quadruplum (...). O responsório e Aleluia [na Missa] serão cantados em triplum, quadruplum ou em órgão.
Triplum e quadruplum significavam música a três ou quatro vozes, a ser cantada, no caso, como o órgão, para textos especificamente liturgicos. O trecho sugere que o enorme quadruplum Viderunt de Pérotin foi escrito - pois o texto é apropriado para as festas natalinas - para a comemoração da Festa da Circuncisão na Notre Dame. Um ano depois o bispo divulgou outro edito ordenando que, "na Missa, o responsório e a Aleluia sejam cantados em triplum, em quadruplum ou como órgão". Pode ser que outra obra prima de Pérotin, o quadruplum Sederunt principes (o texto é o intróito da Missa do dia de Santo Estevão) foi composto para 26 de dezembro de 1199, atendendo aos desejos do bispo Eude de Sully. Mas à parte essas irrupções ocasionais da música na própria liturgia, o costume geral em muitos lugares parece ter sido que todo texto litúrgico fosse cantado no cantochão tradicional e que as peças polifônicas se insinuassem no ritual, como aconteceu com o Moteto , ou se juntassem às devoções extralitúrgicas que se tornavam cada vez mais populares no decorrer da Idade Média. Prestava-se grande devoção extralitúrgica à Virgem Maria; a sua Missa era cantada diariamente além da Missa própria do dia, e cantavam-se hinos ou uma Antífona em seu louvor todas as tardes diante da imagem dela. Essas práticas extralitúrgicas davam ao músico liberdade maior que a concedida para o culto diário, e é bem provável que as obras em louvor da Virgem, que superam em número qualquer outra obra religiosa sobrevivente da alta Idade Média, se devam não apenas à devoção pessoal do compositor, mas também ao fato de que o culto da Virgem Maria lhe permitisse maior liberdade de ação do que em outra circunstância. Assim, o novo estilo de música paulatinamente se apossou de palavras que outrora haviam sido sacrosantas. Na verdade, porém, o Liber organi de Léonin e Pérotin, que inclui muitas músicas sabidamente de outros autores, contém música para o "Próprio" da Missa, textos para os quais, pertencentes a ocasiões específica davam ao compositor liberdade para elaborar. Quem ouvisse uma Missa de Victoria, Palestrina ou qualquer de seus sucessores, ouvia música para o "Ordinário" invariável do ritual, e não as inserções variáveis que dependiam do dia real da comemoração. A seqüência do "Ordinário", as partes da Missa tradicionalmente cantadas pela congregação, e a primeira Missa a que se pode atribuir nome do compositor - a de Machaut - foi provavelmente composta para a coroação do rei francês Carlos V em Reims, em 1364. A solenidade e pompa da ocasião explicam e escusam a sua audácia revolucionária; porém, mais de um século antes, as palavras do texto litúrgico já haviam começado a ser regularmente tratadas pelos compositores, não obstante os freqüentes ataques amargos à música religiosa "progressista".





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